FANFICNATION Entrevista: As Fanfics e a Literatura
- Ana Laura Ferreira
- 28 de jun. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 30 de ago. de 2022

O debate entre fanfics e literatura é constante no meio das produções de fãs. Entretanto, é consenso entre os estudiosos da área que as fics e AUs configuram um novo, porém muito válido, tipo de literatura com potencial para ganhar o mundo. Para conversar um pouco sobre o assunto, convidamos a Professora Associada da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR - Curitiba), e Doutora em Linguística pela Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de São Paulo (USP), Maria de Lourdes Rossi Remenche, para entendermos um pouco melhor a relação das fanfics com a cultura do multiletramento.
A fanfic pode ser considerada um tipo de literatura? Por que?
Claro que a fanfic pode ser considerada uma forma de literatura! O leitor e o autor são diferentes, porque na fanfic temos um deslocamento desses papéis, mas no fim temos uma literatura que é produzida em uma outra mídia. Quando a gente se desloca, e vai para diferentes meios digitais, acabamos criando outras práticas literárias.
Nós acabamos de produzir um número para a revista Humanidades Digitais, que é A Literatura em Diferentes Mídias, e ali temos um apanhado de várias outras expressões e aspectos que mudaram a literatura e que trouxeram outros contornos para ela. Desse modo, esta literatura é uma produção cultural, que fala de nós, dos nossos jeitos, e que vai se expressar. Mas o que eu acho mais importante é como a fanfic é lida pelos jovens e pelos adultos. Eu tenho inúmeros alunos na graduação, e acabei de orientar um TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), que discutiu justamente o deslocamento do autor para leitor dentro da fanfic.
Então, é uma literatura que tem haver com o contemporâneo e com os novos letramentos [digitais], pois estabelece outras interlocuções. E ela tem haver com os multiletramentos também.
O processo de desenvolvimento e publicação das fanfics é muito parecido com o de livros digitais independentes. Por que ainda há uma desvalorização do trabalho do autor de fanfic que não vemos nos escritores independentes?
Porque tudo que é novo gera um estranhamento, e dentro desse estranhamento costumamos ter um movimento contrário. Mas mesmo o livro em que o próprio autor é o editor, há também isso, então são poucos os que se destacam. Se fizermos uma análise das fanfics, logo no início de seu surgimento até hoje, cada vez mais temos sites balizados com trabalhos de revisão, orientação de escrita, orientação de linguagem, troca de ideias e fãs de fanfics, o que ajuda a desmistificar esse processo.
Vivemos uma crise editorial muito forte no Brasil nos últimos anos, o que gerou o fechamento de muitas livrarias e o fim de vários selos literários. As fanfics podem gerar algum impacto nesse cenário nacional?
Eu não acho que as fanfics influenciam. Estamos produzindo em diferentes mídias e cada vez mais produtos circulam por esse mundo digital por sua facilidade. Eu carrego 100 livros no Kindle! A gente vive em espaços menores, mas ainda assim têm pessoas que não abrem mão do prazer do livro, do cheiro, de se ter uma outra experiência, então eu não acho que as fanfics criam esse impacto.
Entretanto, ela traz para a literatura pessoas que antes não tinham condições, e não só pela compra, mas porque não encontravam esse lugar em que elas poderiam se deslocar [de leitor para autor]. Outro ponto é que hoje temos muitas pessoas que escrevem do seu próprio lugar de fala. Porque, o que é a literatura? Ela é essa capacidade que temos de nos identificar.
Eu acredito que as fanfics ampliam a leitura literária, porque é literatura também. E aí nós temos algumas divergências, o que é natural em estudos das ciências humanas, mas, no fim, temos um processo criativo, de escrita, de organização, construção de personagens e de enredo, que vai sendo delineado e constituindo essas histórias que podem ou não virar best sellers.
A fanfic impacta outros movimentos e outros sujeitos. Eu tenho acompanhado práticas de fanfics em salas de aula, com professores de educação básica, tanto fundamentais quanto médios, e o interesse pela escrita literária para estes alunos muda completamente com esse tipo de leitura. Então ao invés de presenciarmos um momento de declínio da escrita, o que temos é um movimento ascendente e isso é muito importante para criar sujeitos que pensem e representem isso por meio de várias linguagens. A fanfic está presente na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), ela é objeto de conhecimentos, envolve a escrita criativa e traz diferentes visões de mundo, ela se constitui em um gênero importante para a educação, para a formação de leitores e de sujeitos que possam entender e escrever esse mundo em diferentes mídias.
A questão do mercado, eu acredito, às vezes ganha mais do que perde, porque ao formar bons leitores, esses sujeitos buscam outras coisas. Pro bom leitor não tem leitura ruim, mas leituras no plural.
A questão da representação é um aspecto forte das fanfics. Como ela impacta essa literatura?
Precisamos entender que temos diferentes culturas e identidades, e a literatura deve representar esse todo, porque ela fala “de gente”. E esse é o ponto, falar de nós, tudo isso é importante. As novas editoras, que vem trabalhando com auto publicação e colocando a fanfic com outros contornos, vêm ganhando espaço e tendem a ganhar cada vez mais, porque tem mercado para isso.
O peso da palavra fanfic acaba sendo forte socialmente, e muitas vezes autores e leitores não se sentem confortáveis em se abrirem para pessoas de fora dessa comunidade. Por que a palavra fanfic carrega essa carga negativa?
Eu não vejo como carga negativa! O que acontece é que, normalmente, os leitores de fanfics são jovens, então é a mesma coisa do que, na da década de 70/80, quando tínhamos os leitores de Sabrina [HQ], que era aquela literatura de “água e açúcar”, como dizem. As pessoas querem sempre trabalhar com os clássicos.
Mas se a gente olhar para a história da literatura, vamos ver que a fanfic é um bebê, que ainda não conquistou o seu espaço, mas que vem avançando. Basta você observar quantas pesquisas estão surgindo sobre as fanfics. Por isso, temos que ir trabalhando no sentido de desmistificar elas para que, com o tempo, as pessoas entendam como esses textos são elaborados.
As fanfics são uma forma de democratizar a literatura?
Com certeza, porque ela aproxima o leitor e o produtor. Mas além de democratizar, a fanfic pode apresentar o mundo literário para pessoas que não têm acesso. Porque muitas vezes pensamos a literatura de uma forma muito distante da vida e de coisas próximas a nós. A fanfic é importante para a formação do leitor, para a compreensão do mundo e desse sujeito que produz sentidos. O principal é desenvolver práticas que estimulem a leitura e a escrita, principalmente nos contextos digitais dos dias de hoje, e as fanfics entram como uma opção.
Qual a relação entre o multiletramento e as fanfics?
Primeiramente nós temos os “letramentos”, que envolvem as práticas de linguagem e escrita, e o “multi” significa uma multiplicidade de culturas. Então, vamos explorar as diferentes culturas, as quais são mobilizadas pelas fanfics, pensando em uma perspectiva multicultural. E o outro lado do “multi” é a multiplicidade de linguagem, misturando aspectos verbais, visuais, sonoros e gráficos.
Eu considero essa multiplicidade de culturas, porque somos vários, inserido nessa multiplicidade de linguagens que envolvem as práticas de leitura e escrita. Então a fanfic, por estar no meio digital, aciona outras linguagens, além de termos os interlocutores que se diferenciam dos autores, circulando por várias comunicações e culturas. Perceba que é um gênero extremamente multicultural e vai mobilizar multiletramentos, porque precisamos considerar todos os elementos que o formam.
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